POR: WAGNER MAIA e TATIANA GOMES DA COSTA.
Acordei com o corpo pesado, devagar, quase um salto da
cama e fui em
direção ao banheiro lavar o rosto. Nem troquei o pijama e caminhei até a
cozinha, já que tinha uma pia cheia de louça a minha espera e tu chegarias,
mais tarde e sua surpresa estava sendo arquitetada. Enquanto criava coragem,
para por as mãos na água fria e dar um fim temporário, a pilha de pratos de
outros apetrechos. Como em um lampejo, me veio a imagem quando pequena, uma
cena que deixou marcas profundas.
Foi o seguinte, por volta de 1989, estudava em uma escola
pública nos
confins de Jacarepaguá e estávamos nos períodos entre Julho e Agosto; lembro
bem disso, por que estava tendo ensaios para festas juninas e aí
veio essa sensação de inadequação, que carrego ainda hoje. Todas às
crianças animadas e a procura de pares, para poder ensaiar, também fiquei
serelepe, já que era animador lembrar que poderia dançar com roupas
coloridas e ter fotos e histórias, para quiçá contar para mãe e pai e
talvez netos (as). Só que não, ninguém quis dançar comigo, lembro-me que
todas as meninas brancas tinham cabelos compridos e fora às negras que alisavam
os cabelos e eu lá a única de corte Black (como chamavam na época,) e usava
Kichut (um tênis que seu formato parecia uma lancha e tinha grandes cadarços) e
fui sendo deixada de lado, a ponta de sentar em um canto e chorar de raiva pelo
desprezo. A situação foi tão séria, que meu par foi a professora. Isso soou
como prêmio de consolação e às marcas persistem.
De volta à louça e ao dia de hoje, diante dessa lembrança,
fico eu cá a
pensar, quantas vezes fui invisibilizada e desprezada por ser NEGRA, NEGRA e sempre
ter que fazer mais e saber mais e assim como outras mulheres de minha cor, têm
que se desdobrar para lidar com situações e questões, que muitas vezes nos
derruba e nos deixa no limiar entre a desistência ou reação diária contra todas
às provocações.
E ao mesmo o tempo tendo passado e já na casa dos trinta,
se avolumam
histórias semelhantes às de cima, só que por alguns momentos, não há
teoria que de conta, da avalanche diante de tantas falas, olhares tortos
e para isso, foi alguns anos de análise, muito empenho em leitura, para
mostrar que também sou um ser humano e sou capaz. Mais o que dói e a solidão,
essa aí que fica a espreita, que tantas vezes tive que me refazer, para
não desmoronar e não deixar o amor – próprio escoar pelo ralo.
Quantas escolhas amorosas pude realmente fazer, diante do
enquadramento estético, ao qual todos (as) somos submetidos (as) desde
pequeninos (as) e bombardeados por propagandas e fora o sistema educacional e
os tais conjuntos de valores?
Fora os poucos, que não tiveram vergonha de circular comigo a luz do dia, sem
artifícios ou mesmo com falas de que eu era uma amiga, ah, parece
reclamação à toa, mais a ferida ainda lateja e está aberta. Quantas vezes, pude
mesmo não ter que duelar com minha autoestima, para poder sair sem me sentir
afogada (o), pela imposição de me enquadrar no padrão (moça) alma-bem
comportada? E quais não foram às vezes, que me submeti a sofríveis tratamentos
estéticos, para poder me sentir amada? Ou mesmo ter a chance de ser olhada e
não ficar no limbo dos que carregam chagas deixadas pelo R-A-C-I-S-M-O.
Enquanto isso, por conta de um canto de passarinho, que posou no quintal, volto
para o que fazia na cozinha e com lágrimas nos olhos e um aperto no
coração; parei o que fazia e liguei o som, coloquei Negro Drama dos
Racionais Mc’s para rolar e cantar, para desabafar diante de tantos
absurdos vividos e calados.
Negro drama no rádio tocou inúmeras vezes e intercalava com o a música
mulheres negras composta pelo Eduardo do Facção Central e cantada por
Yzalú. O que passava pela cabeça, era bem simples te fazer uma surpresa, que
marcaria sua vida por muitos anos, já que não estaria mais viva, a culpa ia te
corroer. Mesmo tu sendo um homem negro, participante de movimentos e também um
cara bem mente aberta; de uns anos para cá passou me maltratar e a querer me
forçar a me prender a estereótipos do que é ser negra e também mulher. Todos os
dias é um festival de insultos, de abandonos, para resumir a ópera: estou no
limiar de minhas forças e bora lá, e com que essas duas músicas a rolar, pensei
em me cortar com gilete e ficar na cama esvaída em sangue.
Mas não, mesmo com vontade imensa de morrer, rezei,
gritei, aumentei volume do som e assim, quando último talher foi lavado decidi
tomar um banho bem quente e demorado e depois de terminado, ainda molhada e
enrolada na tolha, juntei às roupas, alguns papéis e mesmo com os nervos à flor
da pele, resolvi dar um basta nesse conjunto de monstruosidades... e juntei
coisas e dores, pus uma roupa simples e tênis, catei às chaves e dei uma última
olhada na casa, que chamávamos de ninho...É fui embora, com um fone nos ouvidos
e mesmo indo embora vá por caminhos desconhecidos, o que viria a seguir
chama-se liberdade e mesmo com perrengues, estou disposta a me refazer, e
viver, errar e amar, sem (talvez) ficar refém do medo, de não amar mais
ninguém...
Parado sentado à frente de uma máquina potente que pode me
levar a outro planeta sem sair do lugar, lendo um meio conto, meio poesia de
uma eterna e grande amiga sobre suas histórias passadas de tristezas e
preconceitos. A lágrima rola sobre minha face, vem-me lembrança passada e não
tão diferente das contadas por essa grande amiga.
Fevereiro de 2006, show dos Rolling Stones na cidade
maravilhosa de até então distante para alguns interioranos da cidade de
Saquarema. Pois bem, a convite de uma quase mãe para todos nós, éramos exatos
quatros rapazes dois menores dois maiores, com ar de infantilidades, driblando
mães e pais, conseguimos chegar a tão sonhada cidade maravilhosa.
Logo fomos conhecer o que tinha de bom e como tínhamos
pouco dinheiro fomos para os lugares onde gastavam-se pouco que já não é mais
tão pouco, (praia, lojas de roupas e shopping center). E logo nos apaixonamos
pela cidade. Viera o show, como foi gostoso ver os cantores desfilando com seus
ares juvenis e já nas casas dos 70. Tudo soava como se estivéssemos no paraíso.
Para completar nossa felicidade fomos visitar uma das
favelas mais charmosa do rio, a da Rocinha com seu ar de beleza e abarrotada de
pessoas descendo e subindo 24 horas por dia, isso porque o dia só tem essa
contabilidade de horas. Tudo soava como maravilhoso. Mas deu a hora de
voltarmos para nossa cidade amada e começar nosso tormento.
Pegamos o ônibus em direção a rodoviária (Novo Rio), uma
das maiores do Estado do Rio de Janeiro que absorve uma população gigantesca de
todas as partes do mundo. Ao chegar nessa mesma tudo corria bem, fizemos todos
os procedimentos cabíveis para podermos viajar tranquilamente de volta a
Saquarema. Lembro-me como se fosse hoje, todos ao nosso redor já nos olhavam
com um ar diferente, quatro pessoas sendo três negros e um branco com ar
maltrapilhado.
Num instante aparece em nossa frente dois policiais
militares e com ar de não satisfeitos com todos nós resolvem nos abordar com ar
de truculência. (Vieram de onde?) fala do primeiro policial, (o que tem dentro
da bolsa?) complementou o seu parceiro. Sem saber o que dizer fomos tentando
explicar que estávamos no rio para o show ocorrido no último fim de semana e
que éramos de Saquarema. Mas aquilo não
soou com ar de parcialidade e um dos policiais nos ordenou que tirássemos todas
as nossas roupas da bolsa, para que eles pudessem revistar.
Tudo remexido e sujo de um fim de semana longe de casa,
com ar de revolta um de nós resmungou que éramos trabalhadores e que eles estavam
nos maltratando inclusive nos humilhando, pois a rodoviária parou para ver
aquele filme repetitivo de inúmeros negros sendo revistados diante de inúmeras
pessoas. Sem forças resmungamos e abrimos nossas bolsas e revelamos um
amontoado de roupas sujas. Os policiais seguiram seus ritmos de vida a procura
de novos suspeitos, nós envergonhados sentamos numa pilastra de cimento e
esperamos nosso ônibus chegar para que voltássemos para casa seguros.
Hoje retorno a ler a história dessa brava amiga e sei que
não são contos separados, mas histórias cruzadas de preconceitos distribuídos
no meandro da sociedade. A vida segue seu ritmo malvado e dilacerador, cortando
vidas NEGRAS e periféricas, as jogando para um canto dos submundos dos não
aceitáveis. As lágrimas que senti escorrer sobre meu rosto ao ler essa
história, são resquícios da percepção das pontas cortantes que ultrapassam a
carne negra sofrida dentro do casulo chamado sociedade.