Tifli Camarada Camarão

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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um dia qualquer: Racismos cruzados.




POR: WAGNER MAIA e TATIANA GOMES DA COSTA.
 
Acordei com o corpo pesado, devagar, quase um salto da cama e fui em
direção ao banheiro lavar o rosto.  Nem troquei o pijama e caminhei até a
cozinha, já que tinha uma pia cheia de louça a minha espera e tu chegarias, mais tarde e sua surpresa estava sendo arquitetada. Enquanto criava coragem, para por as mãos na água fria e dar um fim temporário, a pilha de pratos de outros apetrechos. Como em um lampejo, me veio a imagem quando pequena, uma cena que deixou marcas profundas.

Foi o seguinte, por volta de 1989, estudava em uma escola pública nos
confins de Jacarepaguá e estávamos nos períodos entre Julho e Agosto; lembro bem disso, por que estava tendo ensaios para festas juninas e aí
veio essa sensação de inadequação, que carrego ainda hoje. Todas às
crianças animadas e a procura de pares, para poder ensaiar, também fiquei
serelepe, já que era animador lembrar que poderia dançar com roupas
coloridas e ter fotos e histórias, para quiçá contar para mãe e pai e
talvez netos (as). Só que não, ninguém quis dançar comigo, lembro-me que todas as meninas brancas tinham cabelos compridos e fora às negras que alisavam os cabelos e eu lá a única de corte Black (como chamavam na época,) e usava Kichut (um tênis que seu formato parecia uma lancha e tinha grandes cadarços) e fui sendo deixada de lado, a ponta de sentar em um canto e chorar de raiva pelo desprezo. A situação foi tão séria, que meu par foi a professora. Isso soou como prêmio de consolação e às marcas persistem.

De volta à louça e ao dia de hoje, diante dessa lembrança, fico eu cá a
pensar, quantas vezes fui invisibilizada e desprezada por ser NEGRA, NEGRA e sempre ter que fazer mais e saber mais e assim como outras mulheres de minha cor, têm que se desdobrar para lidar com situações e questões, que muitas vezes nos derruba e nos deixa no limiar entre a desistência ou reação diária contra todas às provocações.

E ao mesmo o tempo tendo passado e já na casa dos trinta, se avolumam
histórias semelhantes às de cima, só que por alguns momentos, não há
teoria que de conta, da avalanche diante de tantas falas, olhares tortos
e para isso, foi alguns anos de análise, muito empenho em leitura, para
mostrar que também sou um ser humano e sou capaz. Mais o que dói e a solidão, essa aí que fica a espreita, que tantas vezes tive que me refazer, para não desmoronar e não deixar o amor – próprio escoar pelo ralo.

Quantas escolhas amorosas pude realmente fazer, diante do enquadramento estético, ao qual todos (as) somos submetidos (as) desde pequeninos (as) e bombardeados por propagandas e fora o sistema educacional e os tais conjuntos de valores?

Fora os poucos, que não tiveram vergonha de circular comigo a luz do dia, sem artifícios ou mesmo com falas de que eu era uma amiga, ah, parece
reclamação à toa, mais a ferida ainda lateja e está aberta. Quantas vezes, pude mesmo não ter que duelar com minha autoestima, para poder sair sem me sentir afogada (o), pela imposição de me enquadrar no padrão (moça) alma-bem comportada? E quais não foram às vezes, que me submeti a sofríveis tratamentos estéticos, para poder me sentir amada? Ou mesmo ter a chance de ser olhada e não ficar no limbo dos que carregam chagas deixadas pelo R-A-C-I-S-M-O.

Enquanto isso, por conta de um canto de passarinho, que posou no quintal, volto para o que fazia na cozinha e com lágrimas nos olhos e um aperto no
coração; parei o que fazia e liguei o som, coloquei Negro Drama dos
Racionais Mc’s para rolar e cantar, para desabafar diante de tantos
absurdos vividos e calados.

Negro drama no rádio tocou inúmeras vezes e intercalava com o a música
mulheres negras composta pelo Eduardo do Facção Central e cantada por
Yzalú. O que passava pela cabeça, era bem simples te fazer uma surpresa, que marcaria sua vida por muitos anos, já que não estaria mais viva, a culpa ia te corroer. Mesmo tu sendo um homem negro, participante de movimentos e também um cara bem mente aberta; de uns anos para cá passou me maltratar e a querer me forçar a me prender a estereótipos do que é ser negra e também mulher. Todos os dias é um festival de insultos, de abandonos, para resumir a ópera: estou no limiar de minhas forças e bora lá, e com que essas duas músicas a rolar, pensei em me cortar com gilete e ficar na cama esvaída em sangue. 

Mas não, mesmo com vontade imensa de morrer, rezei, gritei, aumentei volume do som e assim, quando último talher foi lavado decidi tomar um banho bem quente e demorado e depois de terminado, ainda molhada e enrolada na tolha, juntei às roupas, alguns papéis e mesmo com os nervos à flor da pele, resolvi dar um basta nesse conjunto de monstruosidades... e juntei coisas e dores, pus uma roupa simples e tênis, catei às chaves e dei uma última olhada na casa, que chamávamos de ninho...É fui embora, com um fone nos ouvidos e mesmo indo embora vá por caminhos desconhecidos, o que viria a seguir chama-se liberdade e mesmo com perrengues, estou disposta a me refazer, e viver, errar e amar, sem (talvez) ficar refém do medo, de não amar mais ninguém...

Parado sentado à frente de uma máquina potente que pode me levar a outro planeta sem sair do lugar, lendo um meio conto, meio poesia de uma eterna e grande amiga sobre suas histórias passadas de tristezas e preconceitos. A lágrima rola sobre minha face, vem-me lembrança passada e não tão diferente das contadas por essa grande amiga.
Fevereiro de 2006, show dos Rolling Stones na cidade maravilhosa de até então distante para alguns interioranos da cidade de Saquarema. Pois bem, a convite de uma quase mãe para todos nós, éramos exatos quatros rapazes dois menores dois maiores, com ar de infantilidades, driblando mães e pais, conseguimos chegar a tão sonhada cidade maravilhosa.

Logo fomos conhecer o que tinha de bom e como tínhamos pouco dinheiro fomos para os lugares onde gastavam-se pouco que já não é mais tão pouco, (praia, lojas de roupas e shopping center). E logo nos apaixonamos pela cidade. Viera o show, como foi gostoso ver os cantores desfilando com seus ares juvenis e já nas casas dos 70. Tudo soava como se estivéssemos no paraíso.

Para completar nossa felicidade fomos visitar uma das favelas mais charmosa do rio, a da Rocinha com seu ar de beleza e abarrotada de pessoas descendo e subindo 24 horas por dia, isso porque o dia só tem essa contabilidade de horas. Tudo soava como maravilhoso. Mas deu a hora de voltarmos para nossa cidade amada e começar nosso tormento.

Pegamos o ônibus em direção a rodoviária (Novo Rio), uma das maiores do Estado do Rio de Janeiro que absorve uma população gigantesca de todas as partes do mundo. Ao chegar nessa mesma tudo corria bem, fizemos todos os procedimentos cabíveis para podermos viajar tranquilamente de volta a Saquarema. Lembro-me como se fosse hoje, todos ao nosso redor já nos olhavam com um ar diferente, quatro pessoas sendo três negros e um branco com ar maltrapilhado.

Num instante aparece em nossa frente dois policiais militares e com ar de não satisfeitos com todos nós resolvem nos abordar com ar de truculência. (Vieram de onde?) fala do primeiro policial, (o que tem dentro da bolsa?) complementou o seu parceiro. Sem saber o que dizer fomos tentando explicar que estávamos no rio para o show ocorrido no último fim de semana e que éramos de Saquarema.  Mas aquilo não soou com ar de parcialidade e um dos policiais nos ordenou que tirássemos todas as nossas roupas da bolsa, para que eles pudessem revistar.

Tudo remexido e sujo de um fim de semana longe de casa, com ar de revolta um de nós resmungou que éramos trabalhadores e que eles estavam nos maltratando inclusive nos humilhando, pois a rodoviária parou para ver aquele filme repetitivo de inúmeros negros sendo revistados diante de inúmeras pessoas. Sem forças resmungamos e abrimos nossas bolsas e revelamos um amontoado de roupas sujas. Os policiais seguiram seus ritmos de vida a procura de novos suspeitos, nós envergonhados sentamos numa pilastra de cimento e esperamos nosso ônibus chegar para que voltássemos para casa seguros.

Hoje retorno a ler a história dessa brava amiga e sei que não são contos separados, mas histórias cruzadas de preconceitos distribuídos no meandro da sociedade. A vida segue seu ritmo malvado e dilacerador, cortando vidas NEGRAS e periféricas, as jogando para um canto dos submundos dos não aceitáveis. As lágrimas que senti escorrer sobre meu rosto ao ler essa história, são resquícios da percepção das pontas cortantes que ultrapassam a carne negra sofrida dentro do casulo chamado sociedade.